O presente artigo foi escrito pelo sócio advogado Lúcio Lauser, responsável pelo setor de Direito Tributário do escritório.
No dia 25 de agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal analisou a incidência de ITBI sobre as transferências de propriedade imobiliária a título de integralização de capital em sociedades empresárias.
A tese fixada foi de que "A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado", trecho do voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes.
A situação analisada pelo STF teve como pano de fundo uma operação na qual a empresa recebeu imóveis de seus sócios a título de aumento de capital social, no entanto, parte do valor do imóvel foi registrado como contrapartida ao capital social e parte como ‘reserva de capital’.
Esta ratio decidendi nada tem a ver com supostas incidências sobre a diferença positiva entre o valor de mercado do imóvel e o valor de declaração, que sequer teriam critério material para incidência.
O STF consolidou o entendimento de que a imunidade do ITBI se estende as transferências de imóveis decorrentes de eventos societários, ou seja, integralização de capital, fusão, incorporação, cisão ou extinção na pessoa jurídica, salvo se a empresa tiver atividade preponderante de compra e venda de imóveis, locação ou arrendamento mercantil.
Destaco, a fundamentação utilizada pelo Ministro Alexandre de Moraes que poucos tributaristas notaram.
No voto vencedor o Ministro destacou:
A CARTA MAGNA de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis. Do teor do inciso I acima, extrai-se que não incide o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica.
O inciso I do art. 36 do Código Tributário Nacional reflete esse mandamento constitucional, ao dispor que:
“Art. 36 Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I – quando efetuada sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito”;
II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.
Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.”
Segundo KIYOSHI HARADA, o que a norma imuniza não é qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica; a norma imunizante diz respeito exclusivamente ao pagamento em bens ou direitos que o sócio faz para integralização do capital social subscrito que pode ocorrer tanto no início da constituição de pessoa jurídica, como também posteriormente por ocasião do aumento do capital (ITBI - Doutrina e prática. São Paulo: Atlas. 2010, p. 85).
Comparando-se a redação do aludido inciso I com a do art. 9º, § 2º da Emenda Constitucional 18/1965, verifica-se que não há, nesse parágrafo 2º da EC, a menção à situação de “transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica”.
Vejamos:
“Art. 9º Compete aos Estados o impôsto sôbre a transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza ou por cessão física, como definidos em lei, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia.
(...)
§ 2º O imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.”
Como se vê, a ressalva contida no § 2º acima transcrito referia-se à circunstância diferente daquelas eleitas pelo inciso I do § 2º do art. 156 da atual Constituição Federal. Para maior clareza, comparemos:
Art. 156 - (...)
§ 2º O imposto previsto no inciso II:
I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
(...)
A esse respeito, o já mencionado professor HARADA esclarece que as ressalvas previstas na segunda parte do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 aplicam-se unicamente à hipótese de incorporação de bens decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.
É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I.
Nesses últimos casos, há, da mesma forma, incorporação de bens, mas que decorre da “incorporação que é uma operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações” (art. 227 da Lei 6.404/1976 – Lei de Sociedades Anônimas); cisão - operação pela qual uma sociedade transfere parte de seu patrimônio para uma ou mais empresas (art. 229 da Lei das S.A); ou fusão - operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar uma nova sociedade que lhe sucederá em todos os direitos e obrigações.
Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I - “ nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” - revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão “nesses casos” não alcança o “outro caso” referido na primeira oração do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF.
A interpretação atribuída pelo STF, embora não sirva como precedente mas sim como fundamento, parece ter dividido a imunidade do ITBI em duas possibilidades, uma incondicionada e outra condicionada. A primeira, seria a imunidade da incidência de ITBI para realização de capital, isto é, integralização e a segunda para fusão, incorporação, cisão e/ou extinção, daí sim condicionada à atividade da empresa não ser imobiliária.
Esta interpretação inédita, que ainda pende de julgamento de recursos aclaratórios (referência setembro/2020) permite em última análise refletir sobre o alcance da interpretação que vinha sendo admitida acerca da transferência de bem imóvel para integralização ou aumento de capital social, sem constituição de reservas, como fato gerador do imposto sobre transmissão de bens imóveis.
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